Cidade fria, porém, vívida no berço d’uma noite de sábado. Em meu quarto,
parcamente iluminado pela luz amarela do poste da rua, deitado com meias,
moletons, touca e encoberto por edredons, fito o relógio na parede: 19h! Enquanto
a multidão lá fora traduz-se polvorosa pela promissora noite sabática, aqui
dentro o caos. Pensamentos voam como almas brancas assustadas, amargas. O
cansaço força meus olhos que quase descerram. Vento frio. Viro-me então cobrindo
o resto da cabeça. Lá embaixo olhos são inúteis.
Horas depois, o sono profundo e o corpo repousado cedem lugar a devaneios
voadores e psicodélicos, como feixes de luz vindos de várias direções, mas que me
levam velozmente ao lado oposto da cidade, outrora adjacente. Entre sons e
imagens vividas por anos no melhor estilo “Good Times, Bad Times”, esperto-me
assustado. Penumbra. Descubro o rosto. Pausa... Não ouço absolutamente nada.
Incomodado, levanto e dirijo-me à janela gradeada. Sinto na pele os respingos
do chuvisco trazidos pelo vento gélido. Já são 2h da madrugada. As lâmpadas
amarelas dos postes iluminam o nada. Por melancólicos instantes, ao nada olho –
desvairado. Ainda de pé lutando novamente contra o sono e arrepiado pelo frio covarde,
pensamentos saudosos transformam a leveza do silêncio notívago em injusta aflição.
Fechando a janela, retorno ao interior do quarto friccionando as mãos e pondo-as
no rosto, numa clara tentativa de buscar o mínimo de calor que decerto não
virá. Sem o êxito sabido, sento na cadeira da escrivaninha dando vida à
luminária. Abro a primeira gaveta esquerda e ajunto mais um acessório contra o
frio – luvas. Mãos enluvadas no queixo e balançando a cadeira, cá estou
conjecturando: “Muita coisa não faz sentido. Mundo louco! Pessoas! Relações. Amores...
Passado. Presente. Futuro. Trabalho. Desemprego. Arte. Música. Confrontos
armados. Nascimento. Morte. Pensar demais enlouquece”. Eis que numa centelha
racional: “Preciso de algo quente urgente! Estou delirando”.
Saindo cuidadosamente do quarto, com passos silenciosos feito um bichano,
ratifico ser o único presente na casa, que mais parece um abismo tamanha
‘escureza’. Palmeando a parede e cambaleando de frio, alcanço a cozinha. Enfim,
luz. Mas luz demais. Tanta luz que parecia o confronto entre a calda quente de
um foguete e os meus olhos. Após a ambientação, dúvida entre o chocolate quente
ou café. Apesar de um pouco mais demorado escolhi o café, claro! Água no
canecão de alumínio, fogo aceso no máximo. A espera é maçante. A água em
ebulição produz sons totalmente descompassados. Por alguns minutos fiquei ali
escutando o barulho das bolhas d’água. Num determinado momento, aproximei meu
rosto, a certa distância, do canecão para aproveitar o vapor. Observei que o
reflexo do meu rosto na água borbulhante movia-se tortuoso, deformado e em
pequenos estouros. Agora eram os sons descompassados e as imagens perturbadoras.
Aquela cena audível e descontrolada traduz exatamente meu cérebro quando posto em
conflito e inquietação.
Ao passar o café, somente aquele aroma delicioso e inconfundível apruma
e reorganiza a vida. Caminhando em direção à sala pela escuridão novamente,
sento-me no sofá com o cotovelo apoiado no braço daquele assento baixo, de
pernas cruzadas e imaginando: “Um cigarro agora seria o parceiro ideal”. Claro!
Possuir um pequeno assassino ‘dominado’ ente os dedos naquele silêncio sepulcral,
tragando-o prazerosamente e ouvindo sua queima que ilumina pequeno raio de circunferência
é, de fato, tentador. Mas n’outra centelha exortei tal impossibilidade, afinal
de contas, não tenho mais esse hábito – apesar de relaxante e, mesmo se
tivesse, não sairia atrás de um àquela hora, naquele tempo.
Mais racional pós-café e não pensando, ao menos por enquanto, ao que lamentavelmente
se esvaiu, retorno ao quarto para depurar pensamentos na inércia da madrugada,
andando em círculos e mastigando qualquer coisa – processos que se complementam.
Amanhã o dia será longo, muito longo, mesmo sendo domingo. Mas para que
ele termine bem, só dependerá de mim – como tem sido há algum tempo...
