quinta-feira, 25 de maio de 2017

MEMÓRIAS NUBLADAS

Cidade fria, porém, vívida no berço d’uma noite de sábado. Em meu quarto, parcamente iluminado pela luz amarela do poste da rua, deitado com meias, moletons, touca e encoberto por edredons, fito o relógio na parede: 19h! Enquanto a multidão lá fora traduz-se polvorosa pela promissora noite sabática, aqui dentro o caos. Pensamentos voam como almas brancas assustadas, amargas. O cansaço força meus olhos que quase descerram. Vento frio. Viro-me então cobrindo o resto da cabeça. Lá embaixo olhos são inúteis.

Horas depois, o sono profundo e o corpo repousado cedem lugar a devaneios voadores e psicodélicos, como feixes de luz vindos de várias direções, mas que me levam velozmente ao lado oposto da cidade, outrora adjacente. Entre sons e imagens vividas por anos no melhor estilo “Good Times, Bad Times”, esperto-me assustado. Penumbra. Descubro o rosto. Pausa... Não ouço absolutamente nada. Incomodado, levanto e dirijo-me à janela gradeada. Sinto na pele os respingos do chuvisco trazidos pelo vento gélido. Já são 2h da madrugada. As lâmpadas amarelas dos postes iluminam o nada. Por melancólicos instantes, ao nada olho – desvairado. Ainda de pé lutando novamente contra o sono e arrepiado pelo frio covarde, pensamentos saudosos transformam a leveza do silêncio notívago em injusta aflição.

Fechando a janela, retorno ao interior do quarto friccionando as mãos e pondo-as no rosto, numa clara tentativa de buscar o mínimo de calor que decerto não virá. Sem o êxito sabido, sento na cadeira da escrivaninha dando vida à luminária. Abro a primeira gaveta esquerda e ajunto mais um acessório contra o frio – luvas. Mãos enluvadas no queixo e balançando a cadeira, cá estou conjecturando: “Muita coisa não faz sentido. Mundo louco! Pessoas! Relações. Amores... Passado. Presente. Futuro. Trabalho. Desemprego. Arte. Música. Confrontos armados. Nascimento. Morte. Pensar demais enlouquece”. Eis que numa centelha racional: “Preciso de algo quente urgente! Estou delirando”.

Saindo cuidadosamente do quarto, com passos silenciosos feito um bichano, ratifico ser o único presente na casa, que mais parece um abismo tamanha ‘escureza’. Palmeando a parede e cambaleando de frio, alcanço a cozinha. Enfim, luz. Mas luz demais. Tanta luz que parecia o confronto entre a calda quente de um foguete e os meus olhos. Após a ambientação, dúvida entre o chocolate quente ou café. Apesar de um pouco mais demorado escolhi o café, claro! Água no canecão de alumínio, fogo aceso no máximo. A espera é maçante. A água em ebulição produz sons totalmente descompassados. Por alguns minutos fiquei ali escutando o barulho das bolhas d’água. Num determinado momento, aproximei meu rosto, a certa distância, do canecão para aproveitar o vapor. Observei que o reflexo do meu rosto na água borbulhante movia-se tortuoso, deformado e em pequenos estouros. Agora eram os sons descompassados e as imagens perturbadoras. Aquela cena audível e descontrolada traduz exatamente meu cérebro quando posto em conflito e inquietação.

Ao passar o café, somente aquele aroma delicioso e inconfundível apruma e reorganiza a vida. Caminhando em direção à sala pela escuridão novamente, sento-me no sofá com o cotovelo apoiado no braço daquele assento baixo, de pernas cruzadas e imaginando: “Um cigarro agora seria o parceiro ideal”. Claro! Possuir um pequeno assassino ‘dominado’ ente os dedos naquele silêncio sepulcral, tragando-o prazerosamente e ouvindo sua queima que ilumina pequeno raio de circunferência é, de fato, tentador. Mas n’outra centelha exortei tal impossibilidade, afinal de contas, não tenho mais esse hábito – apesar de relaxante e, mesmo se tivesse, não sairia atrás de um àquela hora, naquele tempo.

Mais racional pós-café e não pensando, ao menos por enquanto, ao que lamentavelmente se esvaiu, retorno ao quarto para depurar pensamentos na inércia da madrugada, andando em círculos e mastigando qualquer coisa – processos que se complementam.

Amanhã o dia será longo, muito longo, mesmo sendo domingo. Mas para que ele termine bem, só dependerá de mim – como tem sido há algum tempo...